O LIVRO DO COMENDADOR

Raymundo Mário Sobral.

Raymundo Mário Sobral.

Raymundo Mário Sobral é um catador de palavras. Isso mesmo! Denominação criada por ele, se deu por causa de um de seus trabalhos mais marcantes: o livro Dicionário Papachibé. O conteúdo do livro fez tanto sucesso que já chegou ao 4º volume, e recentemente todos os volumes foram reunidos para o lançamento de uma coletânea. Raymundo Sobral iniciou a carreira dele na TV Marajoara – canal 2, a primeira estação de TV de Belém, e foi um dos primeiros realizadores (hoje se chama DIRETOR) da emissora. Foi colunista no extinto jornal A Província do Pará, além de ser idealizador do jornal PQP – Um jornal para quem pode, criado em 1979. Sobral também é o primeiro e único comendador de araque da Ordem do Macaco Torrado, criada também por ele.

Sobral estará presente na XVIII Feira Pan-Amazônica do Livro para uma sessão de autógrafos, no estande Escritor Paraense, dia 4 de junho. Confira a entrevista que fizemos com ele!

 

3D: O que o levou a escrever o livro Dicionário Papachibé?

Sobral: Começou quase por acaso. Um determinado dia fui visitar meu amigo Hiroshi Yamada e de repente, no meio da conversa, ele disse uma expressão que nem eu mesmo conhecia, um termo bem antigo, uma expressão tipo “no tempo do ronca”. Eu fiquei surpreso e disse “Po, Hiroshi, da onde veio isso? Eu não conhecia essa expressão”, e o Hiroshi respondeu que era usada há muito tempo e que havia muitas outras. Ele pegou uma caneta e um papel e anotou umas dez expressões do palavreado paraense  e disse “Toma, pega aí e na medida do possível vai publicando isso na tua coluna”. Eu peguei o papel, só que ao invés de soltar as palavras no meio de textos, eu formatei uma seção da coluna chamada Dicionário Papachibé e comecei a publicar as palavras que deram origem ao livro. Na coluna, eu colocava a expressão, o significado e contava uma historinha na qual aparecia a expressão que havia mencionado. Quando vi, já tinha mais de duzentas publicações, aí vi que dava pra lançar um livro (o Hiroshi Yamada, apesar de te nome de japonês, jeito de japonês, ele é paraense lá de Acará, e foi um dos maiores colaboradores para o livro). O primeiro volume foi um sucesso, eu vendi seis mil exemplares. Com o dinheiro pude patrocinar até a sexta edição do primeiro volume. Esgotando a sexta edição, percebi que já tinha bastante palavras na minha coluna e então lancei o volume dois. O processo foi sempre o mesmo, publicava primeiro na minha coluna e depois reunia tudo em um livro. Depois de ter lançado o volume quatro, muitas pessoas ligavam pra mim dizendo que queriam a coleção completa, por terem perdido algum dos livros, e queriam que eu arranjasse o volume que elas não tinham. Eu dizia que não tinha e achavam que eu não queria dar ou vender. Mas aí vi uma maneira de resolver isso: reuni todos os quatro volumes em um só.

  

3D: Pra você, qual a importância de reunir e documentar essas expressões populares?

 Sobral: Eu acho que a importância é preservar. Se não tiver um registro assim em papel, essas expressões vão se perdendo. Posso até dar um exemplo mais prático, é a pucarina, um objeto que antigamente as mulheres usavam pra guardar joias (a pucarina era uma peça com diversas utilidades, mas costumava ser usada principalmente para guardar pó de arroz).  Hoje em dia não existe mais a pucarina, quanto mais a palavra… mas ela está registrada no livro.

 

3D: Você costuma consultar livros da literatura regional para conhecer novas palavras. Você resgata essas palavras e seus significados pelo contexto dos livros? Conte um pouco do seu processo de pesquisa.

Sobral: Eu costumo dizer que recuso rótulos de dicionarista, filólogo ou linguísta. Eu não sou nada disso, sou um catador de palavras, porque o que faço é isso, fico cantando palavras. Fazendo uma comparação de catador, posso ser comparado a um catador de caranguejo, só que ele mete a mão no mangue, e quando pega um caranguejo ele vibra e fica feliz da vida. Só que na minha pesquisa, ao invés de ser no mangue, é no livro. Eu tinha que ler livros que já tinha lido, todo dia, página por página, como Dalcídio Jurandir, Benedito Monteiro. Depois de lá pelas tantas páginas, eu descobria uma palavra e via que ainda não tinha saído no livro, e que nem o catador de caranguejo, eu ficava feliz da vida porque aquilo ali era como uma joia que eu havia descoberto. Além disso, eu conversava com muitas pessoas, ia no Ver-o-Peso, que eu chamo de Veropa, conversava com o povo – aquela maneira coloquial do pessoal falar. No início, logo quando comecei, além da colaboração do Hiroshi Yamada, tinha meus familiares mais antigos que também sabiam muita coisa. Nas conversas, eles se lembravam de muitas coisas, eu anotava tudo e depois publicava na coluna.

 

3D: Você já fez muitas viagens pelo interior do estado do Pará para conhecer melhor as expressões que lá são utilizadas? 

 Sobral: Se eu fizesse mais viagens para o interior acho que daria pra fazer mais uns 10 livros, porque tem muita coisa. Guimarães Rosa ia para o interior de Minas, levava o gravadorzinho e começava a conversar com as pessoas. Todos aqueles termos usados nos livros dele eram frutos dessas pesquisas. Eu precisava primeiro de disponibilidade de tempo, e segundo, grana pra poder ficar um tempo sem trabalhar. Marajó, Cametá, Afuá, Curralinho, todo esse interiorzão, se eu pudesse ir, com certeza daria pra escrever muitos livros.

 

3D: Atualmente a tecnologia está muito forte, vários aplicativos surgem a cada dia e esse “internetês” tem dominado o nosso falar. Você acha que isso ameaça o nosso tesouro linguístico?

Sobral:  Não acho nem que é a internet, mas sim a televisão. Por exemplo, antigamente o paraense falava que ia lá no “canto”. Hoje ninguém fala mais “canto”, e sim “esquina”. Isso é influência da televisão que fica martelando todo tempo, e o cara não fala que vai no “canto” porque não quer passar por caboco, tem vergonha de assumir a identidade cultural dele.

 

3D: Você pensa em lançar um 6º volume?

Sobral: Com esses 4 volumes que já lancei, acho que tem mais de mil verbetes. Então acho que esse é um trabalho preliminar, meu trabalho não é acadêmico. Quem quiser continuar já vai pegar meio caminho andado, podem ir pro interior pesquisar mais… é inesgotável o linguajar paraense.

 

3D: Você percebe um fluxo intenso da linguagem pelo fato de estarmos imersos em constantes mudanças?

Sobral: Costumo dizer que as palavras surgem com prazo de validade. Elas são lançadas e as pessoas as consomem durante um certo tempo. Por exemplo, a palavra “broca”, que é usada pra dizer que uma pessoa está com fome. Daqui a pouco vão esquecer a palavra e quem falar “broca” vai passar por antigo. As palavras da chamada língua culta, depois de serem consumidas por bastante tempo, vão parar nos Aurélios da vida, já o palavreado paraense nunca teve essa sorte e as expressões iam acabar se perdendo. O meu trabalho tem por finalidade guardar essas palavras. Enquanto existir sobre a face da Terra um livro, um volume desses, estará registrado um pouco da nossa identidade cultural.

 

 

 

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